"River Relembrado" por Peter Bogdanovich: Première, 2001 [Parte 1]

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O diretor do último filme completo de River Phoenix relembra o conturbado e talentoso ator, com o qual ele trabalhou e fez amizade durante seu último ano.

PARTE 1:

 

Por Peter Bogdanovich,

 

No final de 1992, quando eu estava em Manhattan lançando um novo filme, uma ligação interurbana  de um executivo da Paramount chegou ao meu quarto de hotel dizendo que River Phoenix queria estrelar o nosso filme. Fiquei espantado. Nós o oferecemos a ele? Não, o executivo disse: a agente de River tinha ligado para dizer que o ator tinha lido o script e queria interpretar James, o protagonista masculino, um cantor country tentando fazer isso em Nashville. Todos os envolvidos no projeto haviam discutido ele para o papel - seu nome já parecia o de uma estrela country- mas nós tínhamos certeza de que ele era grande demais para ser parte do que era essencialmente uma filmagem modesta. Nenhum de nós tinha sequer se aproximado dele.

No tempo em que eu recebi o primeiro telefonema, River Phoenix vinha interpretando protagonistas em filmes por cerca de seis anos, desde que ele tinha 14 anos. Recentemente, ele recebera elogios por seu retrato íntimo de um prostituto narcoléptido suicida em My Own Private Idaho (1991) de Gus Van Sant, um grande sucesso de crítica e cinema de arte. Embora River supostamente tinha brincado um pouco com drogas, My Own Private Idaho foi a primeira vez que o abuso de substâncias desempenhava um papel importante em um personagem que ele interpretou. Havia homossexualidade no filme também, e havia rumores de que River tinha experimentado ambos na preparação para o seu papel.

A lendária atriz e professora de atuação Stella Adler costumava dizer, "para se fingir de morto, querido, você não tem que morrer".  River não teve nenhum treinamento formal como ator, no entanto, ele apanhou tudo na corrida. Com o talento que possuía, sem limites, mas sem a técnica formal, muitas vezes ele mergulhou no lema "viva o personagem" - vivendo isso até que o trabalho estivesse terminado.

Por toda a sua vida profissional, River Phoenix teve apenas uma agente, Iris Burton, que o adorava e o tratava como um filho. Descobriu-se que foi ela quem tinha enviado a ele o nosso script porque ela sabia que River adorava cantar e escrever músicas. Depois de alguns dias, River ligou. "Este script realmente não está pro", ele disse a ela. Ela repetiu que uma vez que eu estava dirigindo, ela sabia que isso ia ser fortemente revisto. River disse a ela que não tinha idéia de quem eu era. 

Ela lhe perguntou se ele tinha visto A Última Sessão de Cinema (1971) e River disse que não. (É claro que, quando o filme foi lançado originalmente, River tinha cerca de 15 meses de idade.) Ela aconselhou-o a ir até a locadora, alugar o filme, e depois ligar para ela. Ele o fez, e com entusiasmo disse que sim, ele queria trabalhar com "o cara que dirigiu esse filme."

Ele me ligou logo depois e começou por elogiar generosamente A Última Sessão de Cinema, especialmente as performances de todo o elenco. Quando eu dirigi a conversa para o roteiro do novo filme, nós concordamos que o diálogo e a construção precisavam de uma grande quantidade de trabalho. Como ele tinha a mesma idade em média dos personagens principais, eu queria que sua entrada por toda parte. Não só acolheria isso, eu disse, eu esperaria isso. Isso o animou. 

Eu disse a ele que embora ele tenha sido brilhante em cada papel que eu já tinha visto ele fazer, ele nunca tinha interpretado um personagem fortemente à beira do perigo que este sujeito James tinha que ser. Sim, River concordou, ele nunca tinha feito nada parecido. Como ele iria transmitir esse perigo? Perguntei-lhe. Houve silêncio por alguns instantes e, em seguida, River disse: "Silêncio".

Isso foi extraordinariamente perspicaz, eu pensei. O silêncio de um personagem pode ser uma forma de poder, o poder de retenção na fonte e poder é perigoso. A partir dessa única palavra, eu sabia que ele iria desempenhar o papel soberbamente, e ele fez isso. Na época, eu meio que grunhi e disse: "Sim, isso o faria." Então River disse: "Olha, eu quero trabalhar com você, cara, então eu não preciso conhecê-lo. Você tem que me conhecer?" Eu disse que não, que não era necessário, que ambos éramos profissionais. "Sim", ele disse, "Eu só quero ficar aqui com a minha família enquanto eu puder antes que eu tenha que chegar lá e começar a filmagem."

O que seria em breve, eu respondi, dizendo que certamente eu compreendia, e assim quando eu encontrei River Phoenix, cerca de um mês depois, ele já estava interpretando o charmoso, talentoso, mas um pouco difícil, James. Não foi senão depois das filmagens que eu percebi que não tinha encontrado o verdadeiro River Phoenix.

Antes disso, durante as filmagens, eu lidei com um garoto que parecia alternadamente sensível para além das palavras, excessivamente egocêntrico, rude sem rodeios ou com brincadeiras abusivas, temperamental, engraçado, peculiar, frequentemente muito simpático, perigoso. Era a versão de James criada por River, de modo tão inteiramente convincente que eu pensei que era como River realmente era e que ele não estivesse atuando - o que claramente era o River queria.

Durante todo o processo de trabalho, no entanto, o seu lado criativo era objetivo, claro e preocupado não só com o seu próprio papel, mas com todos os personagens. Durante o casting, eu disse a ele que precisava de um outro cara atraente para interpretar seu amigo Kyle. Ele sugeriu Anthony Clark (visto mais tarde muito bem na TV em Boston Common). Nós trouxemos ele e acabei usando-o como um personagem secundário, ampliando o papel de acordo com as habilidades cômicas excepcionais de Anthony. Eu disse a River que eu gostara de Anthony, mas não para o papel de Kyle (o outro protagonista masculino). Precisávamos de mais um candidato, eu disse. River não se intimidou. "Anthony é muito bom com as meninas", disse ele. "Ele marca muitos gols!" Eu rebati: "Mas ele não é um protagonista". 

River parou e olhou para mim por alguns instantes e, em seguida, disse: "Bem, se você quiser um outro protagonista, você não pode fazer melhor do que Dermot Mulroney." River sabia que eu já havia me encontrado com Dermot e uma série de outros atores e que Dermot estava no topo de uma lista de possibilidades. O comentário de River apertava, mas o que eu achei intrigante então - e ainda mais incomum agora - é que River estava pensando em todo o trabalho, e se eu queria dois atores principais, bem, estava tudo bem para ele. Ele não se sentiu ameaçado, na verdade, deixando outro ser mais convencionalmente bonito. Isso estava OK, também. 

Você deveria ser um veterano confiante para ter esse tipo de autoconfiança e sabedoria. Na idade de 22 anos, River já tinha isso de sobra. É por isso que cada vez mais eu o queria envolvido em todas as conferências de script, todas as sessões de escrita, todas as discussões sobre música - ele estava sempre fazendo excelentes contribuições. River era um talento instintivo do mais alto calibre. Quando uma vez eu mostrei a ele que todas as suas idéias e observações relativas ao roteiro ou personagens sempre mantinham a filmagem completa em mente e nunca simplesmente o seu próprio papel, ele disse que sempre pensava dessa forma. Eu disse que ele daria um bom diretor. Ele disse que tinha pensado em dirigir. Eu disse: "Bem, certifique-se e lance-me, sim?" Ele riu e disse que faria isso. Tornou-se uma pequena piada entre nós. Quando eu perguntei o que era que o atraíra para o show business, ele disse que sua mãe costumava ler histórias para ele quando era garoto e ele sempre gostou de histórias, por isso ele gostava especialmente de ser parte de uma história. 

No primeiro dia de filmagem - uma cena noturna em um shopping no local, em Nashville - River deu a sua colega de elenco Samantha Mathis um momento difícil, levando-a às lágrimas. Quando a primeira ligação de River tinha chegado a Nova York, eu estava lá conversando com Samantha sobre fazer o filme. Ela estava preocupada com a prontidão do script, mas quando River assinou, ela pulou dentro. Agora, em Nashville, ela estava muito chateada e disse que ela não precisava "pegar sua merda", ele era "só rude."

Perguntei a ela se ele estava usando alguma coisa. Ela disse que sabia apenas que tinha tomado uma cerveja. O diretor-assistente também me disse que River estava agindo de forma irregular. Perguntei-lhe se ele achava que a nossa estrela estava drogada. O diretor-assistente assentiu. 

Não é uma ótima idéia para um diretor enfrentar um ator, a menos que isso seja absolutamente necessário, então eu sugeri que a primeira coisa que nós iríamos dizer a River era que ele não estaria dirigindo a caminhonete do alto ângulo que nós estávamos nos preparando para a cena final do filme: a caminhonete (com River, Samantha e Dermot na cabine) saindo para as ruas escuras de Nashville. (Filmar o final de um filme primeiro, infelizmente, não é uma prática incomum.) Se River perguntasse por que ele não poderia dirigir, eu disse ao diretor-assistente para dizer que eu achei que era mais seguro um motorista dublê fazer isso, uma vez que o caminhão tinha que se misturar em uma rua principal com a movimentação do tráfego que nós não poderíamos controlar, além disso, a filmagem era de uma boa distância (o público nunca seria capaz de ver quem estava ao volante). 

Eu disse a Samantha que teria uma conversa com River mais tarde, mas meu palpite era que ele estivesse interpretando talvez um pouco demais o seu papel. "Bem, eu não vou aturar isso," Samantha disse e saiu, parecendo ferida, mas determinada.. Ela e River não tinham se apaixonado ainda um pelo outro, mas eles iriam, em breve. Seria a última paixão da vida do ator. Depois de um tempo, o diretor-assistente voltou e disse que River estava muito chateado e não entendia por que ele não poderia dirigir a caminhonete, se que ele era um motorista muito bom. Ele tinha dito que a filmagem seria do alto e muito longe e que ninguém iria saber? "Eu vou saber", foi a resposta de River. Agora eu tinha que ir falar com ele sozinho. 

Correndo para Dermot antes, eu perguntei o que ele achava que poderia ser o problema com River. Dermot imediatamente saiu em defesa de River dizendo que ele tinha um problema nos olhos que o fazia piscar muito às vezes, mas isso não tinha nada a ver com drogas (tudo verdade). Dermot não achava que River estava drogado, ele estava provavelmente apenas "em seu personagem", era como ele trabalhava. "Ele é um cara muito bom,  realmente", disse Dermot quando eu segui em frente. 

River estava andando ao redor do estacionamento, parecendo desamparado e agitado. Eu coloquei meu braço em volta dele e nós caminhamos para a parte de trás do shopping. Perguntei-lhe se ele estava usando drogas de algum tipo. Ele imediatamente disse que ele tinha tomado um comprimido para dor, então se esqueceu e tomou uma cerveja, e os dois não estavam misturando bem. Ele disse que estava se sentindo como se estivesse sendo punido por não ter permissão para dirigir a caminhonete. Eu descartei isso como "uma coisa do seguro", e perguntei o que tinha sido o problema com Samantha. Ele olhou atentamente para mim. Teria ela reclamado para mim sobre ele? Bastante, eu respondi. O que aconteceu? River balançou a cabeça. Não, nada, disse ele, isso não tinha nada a ver com ela. Foi tudo culpa dele - mas ele não quis dizer nada daquilo. Ele só estava tentando "encontrar esse personagem" - um cara irritável. Como o personagem deveria cantar para um teste, "ele estaria ainda mais irritável," River concluiu. 

Continua... 

Fonte: Première, em janeiro de 2001